A Inteligência Artificial no Judiciário: Reflexões Críticas sobre o Sistema Galileu
Renato Evangelista Romão – Advogado Sócio da Taveira e Romão Sociedade de Advogados. Doutorando e Mestre em Direito. Professor universitário.
Bárbara Taveira dos Santos – Advogada Sócia da Taveira e Romão Sociedade de Advogados. Mestre em Direito. Professora Universitária.
Introdução
O uso da inteligência artificial (IA) no Poder Judiciário brasileiro tem se intensificado como uma resposta à demanda por celeridade, eficiência e racionalização dos processos judiciais. Nesse contexto, destaca-se o Sistema Galileu, desenvolvido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), cuja implementação no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2) tem gerado debates relevantes. Apesar dos avanços tecnológicos e das inegáveis vantagens operacionais, a adoção de sistemas de IA no Judiciário suscita riscos e desafios que transcendem aspectos meramente técnicos, envolvendo questões jurídicas, éticas e sociais de alta complexidade.
Este artigo propõe uma análise crítica do Sistema Galileu, ponderando seus benefícios, mas, sobretudo, explorando as preocupações que sua utilização impõe à ordem jurídica, à ética profissional e à cidadania.
O Sistema Galileu: Contextualização e Propostas de Valor
O Sistema Galileu é uma plataforma de inteligência artificial projetada para realizar triagens processuais, sugerir minutas de sentenças e auxiliar magistrados na gestão de acervos, com base em aprendizado de máquina (machine learning) e análise de dados estruturados e não estruturados. Segundo o TRT4, o sistema tem como objetivo principal otimizar fluxos de trabalho, reduzir o tempo de tramitação de processos e oferecer suporte à tomada de decisão judicial, sem substituir a atuação humana.
Com a expansão para o TRT2 — o maior tribunal trabalhista do país —, o Galileu foi saudado como um instrumento de inovação capaz de aliviar gargalos processuais históricos. Contudo, a crescente dependência de algoritmos em funções decisórias no Judiciário impõe uma reflexão aprofundada sobre os limites e impactos dessa prática.
Benefícios Operacionais: Eficiência e Gestão de Volume Processual
A adoção do Galileu tem promovido avanços visíveis na gestão de acervos processuais, especialmente em um contexto de elevada litigiosidade como o da Justiça do Trabalho. A capacidade do sistema de organizar e classificar dados de maneira automatizada contribui para a redução de tarefas repetitivas, permitindo que magistrados e servidores se concentrem em atividades de maior densidade jurídica.
Emerson Malheiro (2023) destaca que a IA, quando corretamente aplicada, pode atuar como uma “ferramenta de inteligência institucional”, promovendo maior racionalidade na gestão jurisdicional sem suprimir a autonomia do julgador. Essa perspectiva, no entanto, é condicionada à existência de um controle humano efetivo sobre os resultados produzidos pelos algoritmos.
Riscos e Desafios Jurídicos: A Transparência e o Devido Processo Legal
A transparência algorítmica é uma das principais preocupações levantadas pela adoção do Galileu. O fenômeno do “algoritmo opaco”, descrito por Shoshana Zuboff (2019), evidencia a dificuldade de compreender os critérios e processos internos pelos quais as decisões automatizadas são produzidas. A ausência de explicabilidade das sugestões feitas por sistemas de IA pode comprometer os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, pilares do Estado Democrático de Direito.
Irineu Barreto (2022) alerta que a automação das decisões judiciais, ainda que parcial, tende a reforçar padrões e vieses históricos existentes nos dados de treinamento, gerando um efeito de retroalimentação (feedback loop) que perpetua injustiças estruturais. A ausência de mecanismos robustos de auditoria e validação dos algoritmos amplifica esse risco.
Implicações Éticas: Autonomia Judicial e Responsabilidade
O uso de sistemas como o Galileu coloca em xeque a própria concepção de jurisdição enquanto atividade eminentemente humana, pautada por discernimento ético e responsabilidade pessoal. A tentação de delegar ao algoritmo tarefas decisórias pode conduzir a uma “terceirização da consciência jurídica”, como observa Renato Opice Blum (2024), reduzindo a atuação do magistrado a um mero ato de homologação de sugestões automatizadas.
Além disso, a questão da responsabilidade jurídica por eventuais erros ou distorções produzidos pela IA permanece indefinida. O arcabouço normativo brasileiro carece de regras claras quanto à responsabilização de agentes públicos e desenvolvedores de software em casos de danos causados por decisões influenciadas ou sugeridas por sistemas de inteligência artificial.
Impactos Sociais: A Tecnologia e a Exclusão Digital
Manuel Castells (2022) enfatiza que a transformação digital das instituições públicas deve ser acompanhada por políticas de inclusão digital e educação tecnológica. A adoção do Galileu, sem um debate público amplo e sem a participação ativa da sociedade civil, corre o risco de aprofundar a exclusão informacional e de tornar o sistema de justiça ainda mais inacessível à população vulnerável.
A percepção de um Judiciário automatizado, distante e desumanizado pode minar a confiança pública nas instituições, o que é particularmente grave em um ambiente já marcado por desigualdades estruturais e desconfianças históricas.
Considerações Finais: O Caminho da Regulação Ética e Democrática
A implementação do Sistema Galileu representa um marco importante no processo de modernização do Judiciário brasileiro. Contudo, sua adoção não pode ser compreendida como uma solução tecnocrática para os problemas estruturais da Justiça do Trabalho. É imprescindível que a incorporação de tecnologias de IA seja acompanhada de um debate jurídico-institucional rigoroso, que leve em consideração os princípios constitucionais e os direitos fundamentais dos jurisdicionados.
A necessidade de regulação ética, transparência algorítmica e controle social sobre os sistemas de IA no Judiciário é urgente e inadiável. O futuro da Justiça Digital depende de um equilíbrio delicado entre inovação tecnológica e salvaguarda dos valores democráticos.
Referências
- BARRETO, Irineu. Direito e Inteligência Artificial: desafios éticos e jurídicos. São Paulo: Atlas, 2022.
- BLUM, Renato Opice. Governança Digital e Inteligência Artificial no Brasil: Ética, Responsabilidade e Regulação. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.
- CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
- MALHEIRO, Emerson. A Inteligência Artificial e o Poder Judiciário: limites e possibilidades. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023.
- ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.