Tributação Inteligente e Concorrência Justa: Reflexões sobre os Impactos da Reforma Tributária no Ambiente Empresarial Brasileiro
Por Renato Evangelista Romão
Introdução
A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 introduziu profundas alterações na estrutura tributária nacional, propondo a substituição de um sistema fragmentado, cumulativo e burocrático por um modelo baseado na tributação sobre o valor agregado. A partir dessa reforma, busca-se não apenas racionalizar o sistema fiscal brasileiro, mas também estabelecer novos parâmetros de justiça fiscal, eficiência econômica e isonomia concorrencial.
Neste contexto, o presente artigo analisa, sob uma perspectiva crítica e técnico-jurídica, os principais impactos da reforma sobre a concorrência no mercado nacional, com foco especial nas implicações para os agentes econômicos privados.
1. Da cumulatividade à neutralidade: os fundamentos do novo modelo tributário
O sistema tributário brasileiro vigente até a reforma caracteriza-se pela sobreposição de tributos indiretos (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI), que incidem de forma cumulativa sobre as diversas etapas da cadeia produtiva e de prestação de serviços. Essa estrutura gera ineficiências alocativas, aumenta o custo de conformidade e distorce a concorrência, favorecendo determinados setores ou localizações geográficas em detrimento de outros.
A substituição desse modelo pelo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), na forma da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) em nível federal, e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em nível subnacional (Estados e Municípios), visa garantir neutralidade tributária, transparência e não-cumulatividade plena, de forma a permitir que a tributação recaia exclusivamente sobre o valor adicionado em cada etapa da cadeia econômica.
2. O período de transição e os desafios operacionais para os contribuintes
A implementação do novo modelo será gradual, com um regime de transição que se estende de 2026 a 2032. Durante esse período, haverá coexistência entre os tributos extintos e os novos IVAs, o que inevitavelmente acarreta aumento da complexidade na apuração e no cumprimento das obrigações acessórias.
Do ponto de vista empresarial, esse processo exigirá investimentos substanciais em sistemas de gestão tributária, adequação contábil e capacitação de pessoal, especialmente em relação à escrituração eletrônica e à interpretação das novas normas. Empresas de menor porte, com menor estrutura de compliance, tendem a enfrentar maiores dificuldades de adaptação, o que pode acentuar, no curto prazo, assimetrias concorrenciais.
3. Imposto Seletivo e reconfiguração de setores estratégicos
A reforma também introduz o Imposto Seletivo (IS), de natureza extrafiscal, cuja finalidade é desestimular o consumo de bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Setores como o de bebidas alcoólicas, tabaco e combustíveis fósseis estarão sujeitos a alíquotas mais elevadas, o que impactará diretamente suas margens, estratégias de marketing e políticas de precificação.
Além disso, o IS pode alterar significativamente a dinâmica concorrencial dentro desses setores, elevando as barreiras de entrada, promovendo movimentos de fusões e aquisições, e incentivando a inovação em produtos com menor impacto ambiental ou sanitário.
4. Economia digital e a superação das barreiras geográficas
Com a adoção de um sistema uniforme de tributação do consumo, a reforma reduz significativamente a insegurança jurídica que historicamente afligiu empresas da economia digital, especialmente em relação à competência tributária sobre serviços eletrônicos.
A uniformização das regras e a centralização da arrecadação tendem a promover maior previsibilidade e isonomia na tributação de plataformas digitais, aplicativos e serviços online, estimulando a concorrência e a ampliação da oferta de produtos e serviços em localidades antes marginalizadas pela estrutura tributária desigual.
5. Proteção aos pequenos negócios e estímulo à formalização
A reforma reconhece a necessidade de proteger os pequenos empreendedores e propõe mecanismos de tratamento diferenciado, como a manutenção do Simples Nacional e a criação da figura do nanoempreendedor, isento da incidência dos IVAs, desde que respeitado o teto de faturamento anual de R$ 40,5 mil.
Esse regime visa incentivar a formalização e o ingresso progressivo desses agentes no mercado formal, garantindo que a simplificação do sistema não resulte na exclusão de setores mais vulneráveis do tecido empresarial.
6. Federalismo fiscal e o papel do Comitê Gestor do IBS
A gestão do novo IBS será realizada por um Comitê Gestor Nacional, composto por representantes dos Estados e Municípios. Tal medida busca assegurar a governança federativa do tributo, preservar a autonomia dos entes subnacionais e permitir a distribuição equitativa da receita, com vistas a reduzir as desigualdades regionais.
Com a eliminação da guerra fiscal e a padronização das alíquotas, os investimentos passam a ser orientados por critérios econômicos reais, e não por incentivos artificiais, promovendo maior eficiência na alocação de recursos.
7. Considerações finais: reforma, concorrência e estratégia empresarial
A reforma tributária em curso tem o potencial de promover avanços significativos na justiça fiscal, na eficiência econômica e na equidade concorrencial. Ao reduzir distorções, eliminar a cumulatividade e simplificar o sistema, ela redefine as bases do ambiente de negócios brasileiro.
Contudo, os efeitos dessa transformação dependerão, em grande medida, da capacidade dos agentes econômicos de se adequarem ao novo modelo, compreendendo suas nuances, exigências e oportunidades. Trata-se, portanto, não apenas de um desafio jurídico-tributário, mas de uma questão estratégica, que exige atuação proativa por parte das empresas — seja na atualização de sistemas, na reestruturação de cadeias produtivas, ou na revisão de modelos de negócio.
A criação de um ambiente concorrencial mais justo e transparente depende, portanto, de uma transição bem conduzida, que respeite os princípios da segurança jurídica, da capacidade contributiva e da proteção à livre iniciativa.
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- Renato Evangelista Romão é Advogado Sócio da Taveira e Romão Sociedade de Advogados. Mestre e Doutorando em Direito. Professor Universitário.